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Foto do escritorAlberto Danon

A Bula Digital deve somar, não alienar

Atualizado: 8 de abr.


Por Carlos Mariotti


Não há progresso que fuja a seus paradoxos, mas por vezes os dilemas são falsos e as saídas, óbvias. Transformações tecnológicas são importantes e bem-vindas, mas não podem vir ao custo da exclusão de parcela da população. A questão se torna ainda mais preocupante quando se trata de saúde, um direito que deve estar ao acesso de todos.

Uma proposta de norma que trata da disponibilização de bulas em formato digital, em fase de consulta pública pela Anvisa (CP 1224/2023), busca excluir as bulas impressas em medicamentos, substituindo-as por um formato digital acessado via QR Code.

Tem-se assim algo aos moldes do que vemos, por exemplo, com cardápios de alguns restaurantes — e cuja supressão física já encontra aí sua parcela de desgostosos. Mas quando o consumo em questão é de fármacos, e não jantares, não se trata de mero capricho. Estamos falando de informações fundamentais como a dosagem, os efeitos colaterais e as contraindicações de medicamentos. Uma questão, em muitos casos, de vida e morte.

Ambas as propostas em debate miram grupos específicos de remédios, e não a universalidade da farmácia. Abrangem aqueles isentos de prescrição, vendidos em cartelas e de forma fracionada, ou de uso contínuo. Ainda assim, a dificuldade de acesso a instruções pode ter consequências graves: o uso incorreto ou abusivo de medicamentos é a principal causa de intoxicação no país, de acordo com a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).

A lógica da digitalização, muitas vezes, traz distorções e desconhecimentos sobre a realidade socioeconômica do país, sua malha de conectividade, e sobre a produção e uso de papel hoje. Vemos um exemplo de apropriação do discurso ambientalista para fins que não lhe cabe — o chamado greenwashing, ou banho verde.

É certo que uma bula digital pode incluir recursos ilustrativos e lúdicos que facilitem sua leitura e entendimento. Ainda mais benéfico é o fato de oferecer uma opção em áudio para deficientes auditivos e analfabetos. Mas as vantagens de enriquecer o volume de informações dadas aos consumidores não podem vir em detrimento da exclusão de parcela deles, que não conseguiria acessá-las por uma miríade de obstáculos frequentes no dia a dia da população brasileira.

Em 2019, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) constatou que 12,6 milhões de domicílios do país não eram conectados por algum desses entraves, entre eles o desconhecimento sobre o uso da internet, recursos escassos e falta de cobertura de rede na região — em áreas rurais, essa ausência atinge 19,2% das residências. Pesa de forma considerável sobre a conectividade a questão financeira: o rendimento médio per capita dos domicílios com internet (R$ 1.527) é o dobro da renda dos que não a utilizam (R$ 728). Fato é que ao menos 40 milhões de brasileiros não têm acesso assegurado à rede ou têm acesso limitado.

Para além da conectividade, a bula unicamente digital exige a disponibilidade de smartphones funcionais, com câmeras capazes de ler um QR Code e carregar um volume considerável de informações. Uma trivialidade como a descarga de bateria já prejudicaria o acesso ao conteúdo. Desnecessário mencionar que, assim como a internet, muitos brasileiros não têm recursos para manter um aparelho celular.

O fim da bula de papel significa, mais uma vez, excluir populações vulneráveis do acesso a serviços fundamentais. Vimos na pandemia jovens serem prejudicados pela falta de equipamentos ou de planos de dados, a despeito dos esforços pessoais para continuarem os estudos. Outras milhões de pessoas tiveram dificuldade para obter auxílio financeiro governamental, cujo repasse era intermediado por um aplicativo.

Um importante levantamento do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), realizado junto ao Instituto Locomotiva, mostrou que 33% dos usuários de internet móvel das classes C, D e E já deixaram de acessar serviços públicos e sociais devido ao modelo restrito em vigor hoje no Brasil. Estamos novamente falando de serviços básicos de educação, saúde, finanças e serviços assistenciais.

Há que se considerar, ainda, a dificuldade de pessoas pouco familiarizadas com ferramentas digitais, como é o caso de idosos, os principais beneficiários de tratamentos médicos. Dizer que o uso de QR Code é meramente uma questão de adaptação é ignorar a exclusão digital histórica dessa parcela da população. Aproximar a terceira idade de novas tecnologias exige um processo minucioso que envolva políticas educacionais e o desenvolvimento de aparelhos afeitos às particularidades psicossociais e motoras desse grupo. Ou seja, aqueles que mais precisam dos serviços são paulatinamente afastados do acesso a eles.

Outro argumento que deve ser endereçado é o da sustentabilidade. Ao tomarmos uma decisão sobre os impactos ambientais de um determinado produto, devemos avaliar de forma sistêmica seu ciclo de vida, desde a extração de matérias-primas até o pós-uso.

Nesse sentido, a indústria de papel e celulose é hoje um exemplo de bioeconomia ao adotar práticas verdes em toda a sua cadeia. Não há relação com o desmatamento: 100% do papel brasileiro é produzido a partir de árvores plantadas para fins industriais. O cultivo de árvores com manejo sustentável auxilia na regularização da vazão de água dos rios e ajuda na diminuição da turbidez e do assoreamento dos mananciais hídricos.

Hoje, a indústria brasileira de base florestal, incluindo o segmento de papel e celulose, possui 9,93 milhões de hectares de florestas plantadas e conserva outros 6,73 milhões de hectares de florestas nativas, uma extensão maior que o estado do Rio de Janeiro. Ao final do ciclo, tem-se um produto 100% reciclável e biodegradável. O índice brasileiro médio de reciclagem de papel está em 69,9%.

A bula impressa é, assim, não apenas sustentável, mas a única garantia de acesso imediato e infalível a informações. Sua versão digital é bem-vinda, mas deve ser implementada sem a exclusão da bula física, garantindo assim acessibilidade a todos os cidadãos que necessitam medicamentos. Não há dilema: as inovações digitais devem vir para somar, e nunca alienar. Para se engajar na campanha em defesa da manutenção das bulas impressas, acesse #exijabula e participe da Consulta Pública.




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